quarta-feira, 14 de abril de 2010

Anarquismo - Emma Goldman



um dos textos mostrados na série Sons of Anarchy é este escrito por Emma, estudei sobre ela no primeiro ano de faculdade com a matéria Ciência Política e foi uma das coisas que mais me marcaram, sua coragem, sua garra, seu pensamento. Mas acabei esquecendo e ontem enquanto assistia os episódios da primeira temporada ela me voltou na cabeça. Então vou repartir este texto aqui com vocês e um pedacinho da história da grande mulher que foi Emma Goldman.





" A história do crescimento e desenvolvimento humano é ao mesmo tempo a luta terrível de novas idéias anunciando a chegada de um novo e brilhante amanhecer. Em sua obstinada persistência na tradição, o velho, com seus meios mais cruéis e repugnantes, pretende impedir o advento do Novo, qualquer que seja a forma e o período em que ele se manifeste. Tampouco necessitamos retraçar nossos passos até o passado, a fim de nos darmos conta da enorme oposição, dificuldades e adversidades postas no caminho de cada idéia progressista. A tortura, a tuerca[1]e o chicote permanecem conosco; assim como o traje do convicto e a ira social, tudo conspirando contra o espírito que vai marchando serenamente.

O anarquismo não pode ter a esperança de escapar do destino de todas as demais idéias inovadoras. Evidentemente, como o inovador de espírito mais revolucionário, o Anarquismo necessariamente deve se deparar com a ignorância e a envenenada repulsa do mundo que pretende construir.

Para refutar, ainda que de maneira sucinta, tudo o que está sendo dito e feito contra o anarquismo, seria necessário um livro inteiro. Portanto rebaterei somente duas das principais objeções. Ao assim fazer, tratarei de esclarecer o que verdadeiramente quer dizer Anarquismo.

O estranho fenômeno da oposição ao Anarquismo é o que trás à luz a relação entre a chamada inteligência e a ignorância. E isto não é tão estanho quando consideramos a relatividade de todas as coisas. A massa ignorante tem em seu favor a pretensão de não simular conhecimento ou tolerância. Atuando, como sempre faz, por puro impulso, suas razões são como as das crianças – “Por quê? Porque sim.” Ainda assim a oposição que o não educado faz ao Anarquismo merece a mesma consideração que a do homem inteligente.

Quais são, então, as objeções? Primeiro, o Anarquismo não é praticável, ainda que seja um ideal bonito. Segundo, o Anarquismo equivale a violência e destruição, por isso deve ser refutado, por ser vil e perigoso. Tanto o homem inteligente como a massa ignorante julgam, não a partir de um conhecimento profundo, mas de rumores e falsas interpretações.

Um esquema prático, diz Oscar Wilde, é um que já tem existência ou que poderia ser levado a cabo sob as condições existentes; mas são exatamente essas as condições que o objeta e qualquer propósito que pudesse aceitá-las, necessariamente é incorreto e uma loucura. O verdadeiro critério do prático, portanto, não é se pode manter intacto o incorreto e imprudente; até certo ponto consiste em averiguar se o esquema tem a vitalidade suficiente para abandonar, deixar para trás, as águas estancadas do velho e edificar, na medida em que sustenta uma nova vida. À luz desta concepção, o Anarquismo é definitivamente prático. Mais que nenhuma outra idéia, ajudando a acabar com todo erro e tolice; mais que nenhuma outra idéia, está edificando e sustentando uma nova vida.

As emoções do homem ignorante se vêem continuamente apaziguadas pela história sangrenta do Anarquismo. Não há nada demasiadamente ofensivo para ser empregado contra esta filosofia e seus expoentes. Portanto o Anarquismo representa pra o não-pensante, o que o homem proverbial malvado é para uma criança – um monstro obscuro empenhado em engolir-lhe todo; em poucas palavras, destruição e violência.

Destruição e violência! Como poderá saber o homem ordinário que o elemento mais violento da sociedade é a ignorância; que seu poder de destruição é justamente o que o Anarquismo está combatendo? Ele não está ciente de que as raízes do anarquismo são partes das forças naturais e destroem não as células saudáveis, mas o crescimento parasitário, que se nutre da mesma essência da vida social. Está meramente livrando o solo de erva-daninhas e arbustos para eventualmente produzir frutas saudáveis.

Alguém disse que se requer menos esforço mental para condenar, do que se requer para pensar. A indolência mental difundida mundialmente, tão prevalecente na sociedade, nos prova uma vez mais que este feito é muito acertado. Em vez de ir ao significado de qualquer idéia dada, para examinar sua origem e razão de ser, a maioria das pessoas a condenarão inteiramente, ou dependerão de definições de aspectos não essenciais e superficiais ou cheias de prejuízos.

O Anarquismo encoraja o homem a pensar, a investigar, a analisar cada proposição; mas para não pressionar o leitor médio começarei com uma definição e então por último elaborarei.

ANARQUISMO: a filosofia de uma nova ordem social baseada na liberdade sem restrição, feita da lei do homem; a teoria de que todos os governos descansam sobre a violência e, portanto, são equivocados e perigosos à medida que também são desnecessários.

A nova ordem social descansa, evidentemente, na base materialista da vida, mas enquanto todos os anarquistas concordam que o mal atual é um mal econômico, mantém que a solução dessa maldade pode ser conseguida somente sob a consideração de cada fase da vida – individual, a medida que também coletiva; interna, a medida que também a fase externa.

Um escrutínio a fundo na história do desenvolvimento humano descobrirá dois elementos em um amargo conflito, um contra o outro; elementos que agora começam a ser entendidos, não como estranhos entre si, mas como estreitamente relacionados e verdadeiramente harmoniosos, se são colocados em ambientes próprios: os instintos individuais e os sociais. O indivíduo e a sociedade travaram uma guerra implacável e sangrenta pela supremacia, porque ambos estavam cegos diante do valor e da importância do outro. Os instintos individuais e sociais – o primeiro, o fator mais poderoso para a iniciativa individual, seu crescimento, suas aspirações e auto-realização; o segundo, um fator igualmente importante para a ajuda mútua e o bem-estar social.

Não se está longe de encontrar a explicação para a tormenta atroz dentro do indivíduo, e entre este e seu meio. O homem primitivo, incapaz de entender seu ser, menos ainda a unidade de toda a vida, se sente absolutamente dependente de forças cegas e escondidas, sempre preparados para ridicularizar e provocar-lhe. Destas atitudes cresceram os conceitos religiosos do homem como uma mera partícula de pó, dependente dos poderes supremos e elevados que só podem ser satisfeitos através da submissão à sua vontade. Todas as sagas precoces sobre esta idéia, que continuam sendo o Leitmotiv das histórias bíblicas que lidam com a relação do homem com Deus, com o Estado e a sociedade. Outra vez o mesmo motivo, os homens não são nada e os poderes são tudo. Então, Jeová somente tolerará o homem que manifeste a condição de entrega completa. O homem pode ter todas as glórias da terra, mas não poderá ser consciente de si mesmo. O Estado, a sociedade e as leis morais, todas cantam o mesmo refrão: o homem pode ter todas as glórias da terra, mas não poderá ser consciente de si mesmo.

O Anarquismo é a única filosofia que devolve ao homem a consciência de si mesmo, a qual mantém que Deus, o Estado e a sociedade não existem, que suas promessas são vazias e inválidas, já que podem ser efetivadas somente através da subordinação do homem. O Anarquismo, portanto, é o maestro da unidade da vida, não meramente na natureza, mas também no homem. Não há conflito entre os instintos sociais e individuais, não mais do que existem entre o coração e os pulmões: o primeiro é o receptáculo da essência pura e preciosa da vida, o outro é o armazém do elemento que mantém a essência pura da vida social. O individual é o coração da sociedade, conservando a essência da vida social; a sociedade é o pulmão que está distribuindo o elemento para manter a essência da vida – ou seja, o individuo – puro e forte.

“A única coisa de valor no mundo,” disse Emerson, “é a alma ativa, a qual todo homem tem dentro de si. A alma ativa vê a verdade absoluta, a proclama e a cria.”[2] Em outras palavras, o instinto individual é a coisa de valor do mundo. É a alma verdadeira que visualiza e cria a vida de verdade, da qual sairá uma verdade maior, a alma social renascida.

O Anarquismo é o grande libertador do homem frente aos fantasmas que deteve-lhes preso; é o árbitro e o pacificador das duas forças para a harmonia individual e social. Para conseguir esta unidade o Anarquismo declarou guerra às influências perniciosas, as quais, até agora impediram a harmoniosa unidade dos instintos individuais e sociais, do indivíduo e da sociedade.

Religião, a dominação da mente humana; Propriedade, a dominação das necessidades humanas; Governo, a dominação da conduta humana, representa o baluarte da escravidão do homem e dos horrores que lhe exige. Religião! Como domina a mente do homem, como humilha e degrada a alma dele. Deus é o todo, o homem não é nada, diz a religião. Mas, desse nada, Deus cria um reino tão déspota, tirano, cruel, terrível, que nada que não seja desastre, lágrimas e sangue reinam no mundo desde que os Deuses surgiram. O Anarquismo impeli o homem a se rebelar contra esse monstro negro. Quebre seus grilhões mentais – fala o Anarquismo ao homem – pois não vai ser livre até que pense e julgue por si mesmo, e deixará o domínio da obscuridade, o maior obstáculo para todo o progresso.

Propriedade, a dominação das necessidades do homem, a negação do direito de satisfazer suas necessidades. O tempo nasceu quando a propriedade reclamou seu direito divino, quando veio para o homem com o mesmo refrão, igual o da religião, “sacrifica-te! abnega-te! entrega-te!”. O espírito do Anarquismo elevou o homem de sua posição humilhada. Agora ele está de pé, se faz cheio de luz. Aprendeu a ver a insaciável, devoradora e devastadora natureza da propriedade e está preparando-se pra dar o golpe de morte ao monstro.

“A propriedade privada é um roubo”, disse o grande anarquista francês Proudhon. Sim, mas sem risco e perigo para o ladrão. Monopolizando os esforços acumulados pelo homem, a propriedade lhe retirou de seu direito de nascimento transformando-lhe em um indigente e um pária. A propriedade nem sequer colocou a desculpa tão gasta de que o homem não crê o suficiente para satisfazer suas necessidades. Apenas aprendendo o ABC da economia, os estudantes já sabem que a produtividade do trabalho durante as últimas décadas excede em muito a demanda normal. Mas o que são demandas normais para uma instituição anormal? A única demanda que a propriedade reconhece é seu próprio apetite guloso para maior riqueza, porque riqueza significa poder, o poder de submeter, oprimir, explorar, o poder de escravizar, de ultrajar e degradar. A América se mostra orgulhosa de seu grande poder, sua enorme riqueza nacional. Pobre América, de que vale toda riqueza se os indivíduos que a compõem são miseravelmente pobres? Vivendo na podridão, na sujeira e no crime; perdida a esperança e alegria, perambula um exército exilado de presas humanas sem casa.

Geralmente se considera, que ao menos que as ganâncias de qualquer negócio excedam seu custo, a bancarrota é inevitável. Mas aqueles comprometidos no negócio de produzir riqueza não aprenderam nem esta simples lição. Cada ano o custo da produção da vida humana está crescendo mais (50.000 assassinados, 100.000 feridos na América no ano passado); os retornos para as massas, que ajudam a criar a riqueza, estão se reduzindo ainda mais. A América ainda continua cega sobre a bancarrota inevitável de nosso negócio de produção. Nem é este o último e único crime. Por enquanto o mais fatal dos crimes é o de converter o produtor em uma mera engrenagem de uma máquina, com menos desejo e decisão do que seu mestre de aço e ferro. Do homem está sendo roubado não apenas o produto de seu trabalho, como também o poder de livre iniciativa, de originalidade e o interesse ou desejo pelas coisas que estão fazendo.

A verdadeira riqueza consiste em objetos de utilidade e beleza, em coisas que ajudem a criar corpos fortes e preciosos, e meios estimulantes de vida. Mas se o homem está condenado a enrolar algodão ao redor do parafuso ou cavar carvão durante trinta anos da sua vida, não há de se falar em riqueza. O que dá ao mundo são coisas horríveis e sujas, reflexo de sua chata e tediosa existência – muito débil para viver e muito covarde para morrer. É estranho dizer, há muitas pessoas que exaltam o método mortal da produção centralizada como a realização de maior orgulho da nossa era. Eles falham absolutamente ao imaginar que se continuarmos na docilidade mecânica, nossa escravidão será mais completa do que foi nossa servidão ao Rei. Eles não querem saber, a centralização não é apenas a morte da liberdade, mas também da saúde e da beleza, da arte e da ciência, todas estas sendo impossíveis em uma atmosfera mecânica parecida a um relógio.

O Anarquismo não pode outra coisa senão repudiar tal método de produção: sua meta é a expressão mais livre possível de todos os poderosos talentos do indivíduo. Oscar Wilde define uma personalidade perfeita como sendo “uma que se desenvolve em condições perfeitas; aquela que não está ferida, mutilada, preocupada ou em perigo.” Uma personalidade perfeita só é possível então em um estado de sociedade onde o homem seja livre para escolher o modo de trabalho, as condições de trabalho e tenha a liberdade para trabalhar. Para quem a fabricação de uma mesa, a construção de uma casa ou a preparação da terra é como a pintura para um artista e a descoberta para um cientista – o resultado de inspiração, de intenso desejo e um interesse profundo no trabalho como uma força criativa. Sendo esse o ideal do Anarquismo, a organização econômica deve consistir na produção voluntária e associações distributivas, gradualmente desenvolvendo-se em comunismo livre, como o melhor meio de produção, com o mínimo gasto de energia humana. O Anarquismo, todavia, também reconhece o direito do indivíduo, ou números de indivíduos, para arrumar todo o tempo para outras formas de trabalho, em harmonia com seus gostos e desejos.

Tal exibição livre da energia humana é possível somente sob a liberdade completa, individual e social. O Anarquismo dirige suas forças contra o terceiro e maior inimigo de toda equidade social, a saber, o Estado, a autoridade organizada ou lei estatuária – a dominação da conduta humana.

Igual a religião que acorrentou a mente humana e a propriedade, o monopólio das coisas, que reprimiu e sufocou as necessidades humanas, o Estado escravizou seu espírito, ditando cada fase da conduta. “Todo governo em essência,” diz Emerson, “é tirania.” Não importa se é um governo por direito divino ou regra da maioria. Em toda instância sua meta é a subordinação absoluta do indivíduo.

Referindo-se ao governo Norte-americano, o grande anarquista americano David Thoreau, disse: “O governo, que é senão tradição, ainda que recente, tentando-se transmitir intacto à posteridade, mas a cada instante perdendo sua integridade; este não tem a força nem a vitalidade de um simples homem vivente. A lei nunca fez os homens sequer um pouco mais justos e por seu meio de respeito para esta, até os bem dispostos são diariamente convertidos em agentes da injustiça.”

De fato a idéia central do governo é a injustiça. Com a arrogância e auto-suficiência do Rei, que não podia fazer errar, os governos ordenam, julgam, condenam e castigam as ofensas mais insignificantes, enquanto se mantém pela maior de todas ofensas: a aniquilação da liberdade individual. Assim Ouida[3] está certa quando ela diz que “o Estado só busca, ainda assim, inculcar aquelas qualidades necessárias no público, pelas quais suas demandas sejam obedecidas e seus cofres se encontrem cheios. Sua conquista máxima é a redução da humanidade a um relógio. Em sua atmosfera todas essas liberdades finas e muito delicadas, que requerem tratamento e uma expansão espaçosa, inevitavelmente se secam e morrem. O estado requer uma máquina de pagar impostos que não tenha empecilhos, um cofre que nunca tenha déficit; um público monótono, obediente, sem cor, sem espírito, movendo-se humildemente, como um rebanho de ovelhas junto em um caminho alto e reto entre duas paredes.”

Mas até um rebanho de ovelhas resistirá a vã sutileza do Estado, se não fosse pelos métodos opressivos, tirânicos e corruptos empregados para servir de seus propósitos. Portanto Bakunin repudia o Estado, o vê como sinônimo de entrega da liberdade individual ou das pequenas minorias – destruição da relação social, restrição ou até completa negação da própria vida, para seu engrandecimento. O Estado é o altar da liberdade política e, como o altar religioso, é mantido para o propósito do sacrifício humano.

De fato, quase não há nenhum pensador moderno que não concorde que o governo, a autoridade organizada ou o Estado, são unicamente necessários para manter ou proteger a propriedade e o monopólio. Só se mostram eficiente para esta função.

Até George Bernad Shaw[4], que tem esperanças de um milagre do Estado sob o Fabianismo[5], porém admitindo que “este é, no presente, uma imensa máquina de roubar e escravizar o pobre com a força bruta.” Sendo este o caso é difícil entender porque o inteligente introdutor deseja manter o Estado depois que a pobreza cesse de existir.

Desafortunadamente, ainda há um número de pessoas que continuam com a crença fatal de que o governo descansa sobre leis naturais, que estas mantêm a ordem social e a harmonia, que diminuem o crime e que previne que o homem indistinto engane seu semelhante. Portanto examinarei estas alegações.

Uma lei natural é aquela pela qual o homem afirma a si mesmo livremente e espontaneamente, sem nenhuma força externa, em harmonia com os requisitos da natureza. Por exemplo, a demanda por nutrição, satisfação sexual, luz, ar e exercício é uma lei natural. Mas a sua expressão não necessita da maquinaria do governo, nem do cassetete, da pistola, das algemas ou da prisão. Obedecer tais leis, se é que podemos chamar de obediência, requer somente espontaneidade e livre oportunidade. Que os governos não se mantêm através de tais fatores harmoniosos, é provado com as terríveis demonstrações de violência, força e coerção que usam todos os governos para poder viver. Portanto, Blackstone está correto quando diz “As leis humanas são inválidas, porque estas são contrárias a lei da natureza.”

A menos que seja a ordem de Varsóvia depois da matança de milhões de pessoas, é difícil atribuir aos governos a capacidade para a ordem ou a harmonia social. A ordem derivada da submissão e mantida com terror não garante muita segurança, ainda que essa seja a única “ordem” que os governos manteriam. A verdadeira harmonia social cresce naturalmente da solidariedade de interesses. Em uma sociedade onde os que sempre trabalham nunca tiveram nada, enquanto os que não trabalham desfrutam de tudo, a solidariedade de interesses não existe, portanto a harmonia social é mais um mito. A única maneira de a autoridade organizada enfrentar esta situação grave é estendendo os privilégios dos que já monopolizaram a terra, escravizando ainda mais as massas deserdadas. Assim todo o arsenal do governo – leis, polícia, soldados, as cortes, legislaturas, prisões – é energicamente engajado na “harmonização” dos elementos mais antagônicos da sociedade.

A desculpa mais absurda para a autoridade e a lei é que elas servem para diminuir o crime. À parte do fato que o Estado é em si mesmo o maior criminoso, rompendo toda lei escrita e natural, roubando na forma de impostos, assassinando na forma de guerra e pena capital, chegou a se ver completamente superado em sua luta contra o crime. Falhou totalmente em destruir ou mesmo minimizar o terrível flagelo de sua criação.

O crime não é nada mais que energia mal dirigida. Enquanto toda instituição de hoje, econômica, política, social e moral, conspira para dirigir erradamente a energia humana por canais equivocados; enquanto a maioria das pessoas estão fora de lugar, fazendo as coisas que odeiam fazer, vivendo uma vida que detestam viver, o crime será inevitável e todas as leis nos estatutos somente podem aumentar, mas nunca terminar com o crime. O que sabe a sociedade, como a que existe hoje, do processo de desespero, da pobreza, dos horrores, da pusilânime luta que passa a alma humana em seu caminho até o crime e a degradação. Quem conhece este processo terrível não pode deixar de ver a verdade nestas palavras de Piotr Kropotkin:

“Esses que calcularão o balanço entre os benefícios atribuídos a lei e ao castigo e o efeito degradante destes sobre a humanidade; que estimarão a torrente de maldade derramada sobre a sociedade humana pelo informante, favorecido até pelo Juiz e pago em moeda-ressonante por governos, sob o pretexto de ajudar a desmascarar o crime; esses que irão para dentro das paredes da prisão e ali verão no que se converteu os seres humanos quando privados de sua liberdade, quando são sujeitos ao cuidado de guardas brutais, com grosserias, com palavras cruéis, enfrentando-se milhões de humilhações pungentes e agudas, concordarão com nós que o aparato inteiro da prisão e seu castigo é uma abominação que deve terminar.”

A influência dissuasiva da lei sobre o homem ocioso é demasiadamente absurda para merecer alguma consideração. Somente em liberar a sociedad do gasto e dos desperdícios que causa manter uma classe ociosa e do igualmente gasto grande da parafernália de proteção que esta classe de ociosos requer, na sociedade existiria abundância para todos, inclusive até para o individuo ocioso ocasional. Além disso, é bom considerar que a vagabundagem é resultado dos privilégios especiais ou das anormalidades físicas e mentais. Nosso demente e insano sistema de produção patrocina a ambos e o fenômeno mais surpreendente é que as pessoas desejem trabalhar, ainda agora. O Anarquismo visa despir o trabalho de seu aspecto estéril e tedioso, de sua tristeza e compulsão. Tenta fazer do trabalho um instrumento de alegria, de força, de cor, de harmonia real, para que ainda o mais pobre dos homens possa encontrar no trabalho recreação e esperança.

Para realizar tal arranjo da vida, o governo, com suas medidas injustas, arbitrárias e repressivas, deve ser eliminado. O melhor que faz é impor um só modo de vida em tudo, sem respeitar as variações individuais e sociais, além de suas necessidades. Destruindo o governo e as leis estatuídas, o Anarquismo propõe resgatar o respeito próprio e a independência do indivíduo de toda a proibição e invasão pela autoridade. Só em liberdade o homem pode cultivar sua completa importância. Somente em liberdade aprenderá a pensar, a se mover e a dar o melhor de si. Só em liberdade realizará a verdadeira força dos laços sociais que atam os homens entre si e que são a verdadeira base de uma vida social normal.

Mas, o que é a natureza humana? Pode ser mudada? E se não, resistirá sob o Anarquismo?

Pobre natureza humana, que crimes horríveis cometeram em teu nome! Todo tonto, desde o rei até a polícia, desde a pessoa mais cabeça fechada até o ignorante sem visão da ciência, presume falar com autoridade da natureza humana. Quanto maior for o charlatão mental, mais definitiva será sua insistência na perversidade e debilidade da natureza humana. Mas como pode qualquer um falar disso hoje, com tantas almas na prisão, com cada coração acorrentado, ofendido e mutilado?

John Burroughs[6] declarou que o estudo experimental de animais em cativeiro é absolutamente inútil. Seu caráter, seus hábitos e seus apetites são submetidos a uma transformação completa quando são arrancados de seu solo no campo e no bosque. Com a natureza humana enjaulada em um estreito espaço, chicoteada diariamente até a submissão, como podemos falar de suas potencialidades?

A liberdade, a expansão, a oportunidade e, sobretudo a paz e o repouso, podem ensinar-nos os fatores dominantes e reais da natureza humana e todas suas magníficas possibilidades.

O anarquismo, então, realmente favorece a liberação da mente humana da dominação da religião, a liberação do corpo humano da dominação da propriedade, a liberação das cadeias e proibições do governo. O Anarquismo significa uma ordem social baseado no agrupamento livre dos indivíduos, com o propósito de produzir a verdadeira riqueza social, uma ordem que garantirá a todo ser humano acesso livre a terra e ao gozo completo das necessidades da vida, de acordo com aos desejos individuais, gostos e inclinações.

Isto não é uma idéia selvagem ou uma aberração da mente. É uma conclusão em que chegaram grandes homens e mulheres inteligentes de todo o mundo, uma conclusão resultante da observação íntima e estudiosa das tendências da sociedade moderna; liberdade individual e equidade econômica, as forças gêmeas para o nascimento do que é bom e verdadeiro no homem.

Quanto aos métodos. O Anarquismo não é, como muitos podem supor, uma teoria do futuro a ser alcançado através da inspiração divina. É uma força viva nos assuntos de nossa vida, constantemente criando novas condições. Os métodos do Anarquismo portanto não compreendem um programa vestido de ferro para se levar a cabo sob qualquer circunstância. Os métodos devem sair das necessidades econômicas de cada lugar, clima, requisitos intelectuais e temperamentais do indivíduo. O caráter calmo e sereno de Tolstoi desejarão diferentes métodos para a reconstrução social, que a intensa e transbordante personalidade de Mikhail Bakunin ou Piotr Kroptkin. Da mesma forma deve ser óbvio que as necessidades econômicas e políticas da Rússia prescreveram medidas mais drásticas que as da Inglaterra ou América. O Anarquismo não significa exercícios militares e uniformidade; entretanto significa espírito revolucionário, em qualquer forma, contra tudo o que impeça o crescimento humano. Todos os Anarquistas concordam com isso, da mesma forma em que estão de acordo em sua oposição à maquinaria política como um meio de causar a grande transformação social.

“Toda votação”, disse Thoreau, “é um jogo de sorte, semelhante a damas ou gamão, o jogo com o bem e o mal, sua obrigação nunca excede sua conveniência. Mesmo votando para o correto é fazer nada por isto. Um homem sábio não deixará o que é certo nas mãos incertas do acaso e nem esperará que a sua vitória se dê através da força da maioria.” Um exame íntimo acerca da maquinaria da política e suas realizações nos levarão à lógica de Thoreau.

O que demonstra a história do parlamentarismo? Nada mais que fracasso e derrota, nem mesmo uma única reforma para melhorar a tensão econômica e social das pessoas. Aprovaram-se leis e fizeram-se estatuto para o melhoramento e proteção do trabalho. Assim sendo, observou-se em Illinois, no ano passado, com as leis mais rígidas para a proteção mineira, os maiores desastres mineiros. Em estados onde as leis de trabalho das crianças prevalecem, a exploração infantil está em níveis altíssimos, e, embora os trabalhadores desfrutem de oportunidade políticas completas, o capitalismo chegou a seu momento de maior insolência.

Mesmo se os trabalhadores pudessem ter seus próprios representantes, que é o que nossos bons políticos socialistas estão clamando, que chances há para sua honestidade e boa fé? Tem mais que se ter em mente o processo da política, para dar-se conta de que seu caminho de boas intenções está repleto de armadilhas: maquinações secretas, intrigas, adulações, mentiras e trapaças; de fato, mentiras de todas as descrições, pelo qual o aspirante político pode conseguir o êxito. Incorporado a isto está a desmoralização completa do caráter e das convicções, até que não reste nada, fazendo com que qualquer humano desamparado tenha esperança. De tempo em tempo as pessoas ficam suficientemente tontas para confiar, crer e apoiar até o seu último centavo, os aspirantes políticos, para ver-se ao final, traídas e enganadas.

Pode-se dizer que os homens íntegros não se converteriam em corruptos, em moinho opressivo político. Talvez não, mas como homens seriam absolutamente impotentes para exercer a mais ínfima influência em nome do trabalho, como de fato foi demonstrado em numerosos exemplos. O estado é o mestre econômico de seus servidores. Os bons homens, se tais existirem, ou permaneceriam fieis a sua fé política e perderiam seu suporte econômico, ou se agarrariam a seus mestres econômicos e seriam completamente incapazes de fazer o menor bem. A arena política não deixa uma alternativa, deve ser um burro ou trapaceiro.

A superstição política ainda domina os corações e as mentes das massas, mas os verdadeiros amantes da liberdade não têm nada a ver com isto. Ao contrário, eles crêem, como Stirner, que o homem tem tanta liberdade tanto quanto ele está disposto a tomar. O Anarquismo, portanto, defende a ação direta, o desafio aberto e a resistência frente a todas as leis e restrições econômicas, sociais e morais. Mas o desafio e a resistência são ilegais. Nisto descansa a salvação do homem. Tudo ilegal necessita de integridade, segurança própria e coragem. Busca por espíritos livres e independentes, por “homens que são homens e que tem osso em suas costas, o qual não pode se atravessar com as mãos.”

O sufrágio universal deve a sua existência à ação direta. Se fosse não pelo espírito de rebelião, de desafio por parte dos pais revolucionários americanos, seus descendentes ainda estariam sob o abrigo do Rei. Se não fosse pela ação direta de um Juan Brown e seus camaradas, a América estaria comercializando a carne do homem negro. Certo, o comércio da pele branca ainda é atual, mas esse, também, terá que ser abolido pela ação direta. O sindicalismo, a arena econômica do moderno gladiador, deve sua existência à ação direta. Mas até recentemente essa lei e governo trataram de oprimir o movimento sindical e condenaram à prisão, como conspiradores, os expoentes do direito do homem a organizar-se. Se eles tivessem procurado lograr suas causas rogando, suplicando e pactuando, os sindicatos hoje seriam quantitativamente insignificantes. Na França, Espanha, Itália, Rússia, até a Inglaterra (testemunha da crescente rebelião das uniões laborais), a ação direta, revolucionária, econômica torna-se uma força tão poderosa na luta pela liberdade industrial que conseguiu fazer com que o mundo desse conta da tremenda importância do poder do trabalho. A greve geral, a expressão suprema da consciência econômica dos trabalhadores foi ridicularizada na América, faz pouco tempo. Hoje toda grande greve, a fim de ganhar, deve dar-se conta da importância do protesto solidário geral.

A ação direta, havendo provado sua efetividade junto às linhas econômicas, é igualmente poderosa no ambiente individual. Ali centenas de forças avançam sobre seu ser e só a resistência persistente frente a elas o libertará, finalmente. A ação direta contra a autoridade no local de trabalho, ação direta contra a autoridade da lei, ação direta contra a autoridade impertinente e invasiva do nosso código moral, é o método lógico e consciente do Anarquismo. Nos conduzirá a uma revolução? De fato, o fará. Nenhuma mudança social veio sem uma revolução. As pessoas estão ou não familiarizadas com sua história, ou ainda elas não aprenderam que a revolução é o pensamento levado à ação.

O Anarquismo, a grande fermentação do pensamento, está hoje imbricado em cada uma das fases do esforço humano. A ciência, a arte, a literatura, o drama, o esforço para a melhoria econômica, de fato, toda oposição individual e social existindo em desordem com as coisas, é iluminada pela luz espiritual do Anarquismo. É a filosofia da soberania do indivíduo. É a teoria da harmonia social. É o grande renascimento da viva verdade que está reconstruindo o mundo e nos anunciará ao amanhecer."


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[1] Instrumento de tortura para apertar polegares.


[2] Ralph Waldo Emerson (25 de maio de 1803, Boston – 27 de abril de 1882, Concord, Massachusetts) foi um famoso escritor, filósofo e poeta estado-unidense. (Informação retirada da enciclopédia livre Wikipédia.org)

[3] Pseudônimo utilizado pela escritora americana Maria Louisa de La Ramée. (Informação retirada da enciclopédia livre Wikipédia.org)

[4] “George Bernard Shaw (Dublin, 26 de julho de 1856 — Ayot Saint Lawrence, 2 de novembro de 1950) foi um escritor, jornalista e dramaturgo irlandês, autor de comédias satíricas que o tornaram espírito irreverente e inconformista.” (Informação retirada da enciclopédia livre Wikipédia.org)

[5] “O Fabianismo é uma doutrina e um movimento político-ideológico socialista democrático, reformista e não-marxista, de concepção inglesa. Teve origem na Fabian Society fundada em Londres no final de 1883 e início de 1884 por um grupo de jovens intelectuais de diferentes linhas socialistas, com o propósito de reconstruir a sociedade com o mais elevado ideal moral possível.” (Informação retirada de http://br.geocities.com/portal_verde_amarelo/Fabianismo.html)

[6] John Burroughs (April 3, 1837-March 29, 1921) foi um naturalista e ensaísta americano importante na evolução do the U.S. conservation movement. (Informação retirada da enciclopédia livre Wikipédia.org)

GOLDMAN, Emma. Anarquismo: lo que significa realmente. Traidores: Espacio Comunitario y Libreria Anarquista Emma Goldman, [Santiago]. Disponível em: . Acesso em: 21 de nov. 2009.

Traduzido por Antonio Henrique do Espírito Santo Loula. Revisado por Íris Nery do Carmo.


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Emma Goldman (Kaunas, 27 de junho de 1869 — Toronto, 14 de maio de 1940) foi uma anarquista conhecida por seu ativismo, seus escritos políticos e conferências que reuniam milhares de pessoas nos Estados Unidos. Teve um papel fundamental no desenvolvimento do anarquismo na América do Norte na primeira metade do século XX.

Nascida em Kovno, no Império Russo (atual Kaunas, na Lituânia), Goldman emigrou para os Estados Unidos da América em 1885 e viveu em Nova Iorque, onde conheceu e passou a fazer parte do florescente movimento anarquista.[1] Atraída pelo anarquismo após a Revolta de Haymarket, Goldman tornou-se uma renomada ensaísta de filosofia anarquista e escritora, escrevendo artigos anticapitalistas bem como sobre a emancipação da mulher, problemas sociais e a luta sindical.[1] Ela e o escritor anarquista Alexander Berkman, seu amante e companheiro por toda vida, planejaram assassinar Henry Clay Frick como uma ação de propaganda pelo ato. Embora Frick tenha sobrevivido ao atentado, Berkman foi sentenciado a vinte e dois anos na cadeia.[2] Goldman foi presa várias vezes nos anos que se seguiram, por "incentivar motins" e ilegalmente distribuir informações sobre contracepção.[3] Em 1906, Goldman fundou o jornal anarquista Mother Earth (Mãe Terra).[4]

Em 1917, Goldman e Berkman foram sentenciados a dois anos na cadeia por conspirarem para "induzir pessoas a não se alistarem" no serviço militar obrigatório, que havia sido recentemente instituído nos Estados Unidos. Depois de serem soltos da prisão, foram novamente presos - junto com centenas de outros progressistas - sendo deportados para a Rússia. Inicialmente simpatizantes da Revolução Bolchevique daquele país, Goldman rapidamente expressou sua oposição ao uso de violência dos sovietes e à repressão das vozes independentes. Em 1923, ela escreveu sobre suas experiências entre os bolcheviques, dando forma ao livro Minha Desilusão na Rússia (My Disillusionment in Russia). Enquanto viveu em Inglaterra, Canadá e França escreveu uma autobiografia chamada Vivendo Minha Vida (Living My Life).[5] Com o início da Guerra Civil Espanhola, em 1936, Emma, já com mais de 60 anos, viajou até a Espanha para apoiar a Revolução Anarquista.[6]

Durante sua vida, Goldman foi celebrada por seus admiradores, como uma livre pensadora e "mulher rebelde", e achincalhada pelos adversários, como sendo defensora de assassinatos políticos e revoluções violentas.[7] Seus escritos e conferências abrangeram uma variedade de assuntos, incluindo o sistema prisional,[8] ateísmo,[9] liberdade de expressão,[10] militarismo, capitalismo,[11] casamento e emancipação das mulheres. Também desenvolveu novas formas de incorporar políticas de gênero no anarquismo.[12] Emma Goldman faleceu na cidade de Toronto, no Canadá em 14 de Maio de 1940.[13]

Após décadas de obscuridade, nos anos 1970 a vida e a obra de Emma Goldman voltaram a ser reconhecidas na medida em que acadêmicas, feministas e anarquistas passaram a se interessar por ela. Este interesse implicou em uma nova onda de divulgação de seu legado, com publicações de seus artigos e livros sendo relançados, e citações e imagens suas sendo estampadas em camisetas e cartazes.

É creditada a ela diversos ditos marcantes do anarquismo entre estes a famosa frase que diz - "Se não posso dançar, não é minha revolução" - capaz de definir de maneira simples a ideia anarquista de liberdade.

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