quinta-feira, 18 de julho de 2013

O Pistoleiro


“O Universo (disse ele) é o Grande Todo e oferece um paradoxo grande demais para ser apreendido pela mente finita. Assim como o cérebro vivo não pode conceber um cérebro não vivo _ embora possa achar que pode_ a mente finita não pode apreender o infinito.
O fato prosaico da existência do universo já desacredita, por si mesmo, o pragmático e romântico. Houve uma época, cem gerações antes de o mundo seguir adiante, em que a humanidade atingira pericia cientifica e técnica suficiente para tirar algumas lascas do grande pilar de pedra da realidade. Mesmo assim, a falsa luz da ciência (o conhecimento, se você preferir) só brilhou em alguns países desenvolvidos. Contudo, apesar de um tremendo incremento de novos conhecimentos, as novas percepções foram notavelmente reduzidas. Nossos muitas vezes tetravós venceram a doença que destrói, que chamavam de câncer, quase venceram o envelhecimento, andavam na Lua e foram feitos ou descobertos dezenas de engenhos incríveis. Mas a riqueza de informação produzia pouco ou nenhum discernimento. Não se escreveram grandes odes sobre as maravilhas da inseminação artificial, ou sobre os carros que andavam graças à força que tiravam do sol. Pouca gente, se é que alguém o fez, parece ter compreendido o mais autentico principio da realidade: novo conhecimento conduz sempre a mistérios ainda mais espantosos. Maior o conhecimento fisiológico do cérebro torna a existência da alma menos possível, ainda que mais provável pela própria natureza da pesquisa.
O maior mistério que o universo propõe não é a vida, mas o tamanho. O tamanho contém a vida e a Torre contém o tamanho. A criança, que em geral está familiarizada com o espanto, diz: papai, o que existe em cima do céu? O pai diz: a escuridão do espaço. A criança: o que existe depois do espaço? O pai: a galáxia. A criança: depois da galáxia? O pai: outra galáxia. A criança: depois das outras galáxias? O pai: ninguém sabe.
O Tamanho nos derrota. Para o peixe, o lago onde ele vive é o universo. O que pensa o peixe quando é puxado pela boca por um gancho prateado, nos limites da existência e penetra num novo universo onde o ar afoga e a luminosidade é uma loucura azulada? Onde enormes bípedes sem guelras o amontoam para morrer numa caixa sufocante, forrada de vegetação úmida?
Ou se pode pegar a ponta de um lápis e ampliá-la. Vamos chegar a um ponto onde uma atordoante compreensão cai sobre nós: a ponta do lápis não é sólida; é composta de átomos que giram e rodopiam como um milhão de diabólicos planetas. O que nos parece sólido é apenas uma rede de coisas soltas, mantidas juntas pela gravidade. Vistas na sua real dimensão, as distâncias entre esses átomos podem se tornar quilômetros, abismos, eternidades. Os próprios átomos são compostos de núcleos com prótons e elétrons girando em torno deles. Podemos descer ainda mais até as partículas subatômicas. E depois para o que? Para os táquions? Para nada? Claro que não. Tudo no universo rejeita o nada; sugerir um término é o único absurdo que existe.
Se você recuasse para o limite do universo, será que encontraria uma cerca de madeira e tabuletas dizendo SEM SAÍDA? Não. Talvez você encontrasse algo duro e arredondado, como o pintinho deve ver o ovo do seu interior. E se você atravessasse a casca beliscando (ou encontrasse uma porta), não poderia jorrar, nesses confins do espaço, uma incrível luz torrencial através da abertura? Você não poderia olhar por ali e descobrir que todo o nosso universo é apenas parte de um átomo numa camada de relva? Não poderia ser lavado a pensar que, ao queimar um graveto, você esta incinerando uma eternidade de eternidades? Que a existência não avança para um infinito, mas para uma infinidade deles?
Talvez você tenha visto o lugar que nosso universo ocupa no esquema das coisas _ não mais que um átomo numa camada de relva. Será possível que tudo que percebemos, do vírus microscópico à distante nebulosa Cabeça de Cavalo, esteja contido numa camada de relva que pode ter existido por uma única estação num outro fluxo de tempo?  E se a camada fosse cortada por uma foice? Quando ela começasse a morrer, a podridão não escorreria para nosso próprio universo e nossas próprias vidas, deixando tudo amarelado, escuro e ressecado? Talvez isso já tenha começado a acontecer. Dizemos que o mundo seguiu adiante; talvez estejamos realmente querendo dizer que ele começou a secar.
Pense em como essa ideia das coisas nos torna pequenos, pistoleiro! Se um Deus vela sobre tudo, acha realmente que Ele vai se preocupar em distribuir justiça a uma raça de mosquitos entre uma infinidade de raças de mosquitos? Será que Seu olho vê o pardal cair quando o pardal é menos que um pontinho de hidrogênio flutuando solto nas profundezas do espaço? E se Ele realmente vê...qual deve ser a natureza de um tal Deus? Onde Ele vive? Como é possível viver além do infinito?
Imagine a areia do deserto de Mahaine que você cruzou para me encontrar, e imagine um trilhão de universos _ não mundos, mas universos_ encerrados em cada grão daquele deserto, e dentro de cada universo uma infinidade de outros. Nós nos elevamos sobre esses universos de uma suposta posição privilegiada na relva; com um movimento de sua boa, você pode chutar um bilhão de mundos, fazê-los voar para a escuridão, numa reação em cadeia que jamais terá fim.
Suponha que todos os mundos, todos os universos se reúnam num único nexo, um mesmo portal, uma Torre. E que dentro dela haja uma escada, levando, talvez à própria Divindade. Você teria coragem de subir até lá, pistoleiro?

O Pistoleiro – A Torre Negra Vol I
Stephen King

sexta-feira, 12 de julho de 2013

*♥* 25 *♥*


Tenho um dragão que vive comigo.

Eles são solitários, os dragões. Quase tão solitário quanto eu, quando ele se vai.

Aprendi que um dragão sente certa dificuldade de se relacionar com outros seres. Seja uma pessoa igual a mim, seja unicórnio, salamandra, harpia, elfo, hamadríade, sereia ou ogro. Duvido que um dragão conviva melhor com esses seres mitológicos, mais semelhantes à natureza dele, do que com um ser humano. Não que sejam insociáveis. Pelo contrário, às vezes um dragão sabe ser gentil e submisso como uma gueixa, eles apenas não dividem seus hábitos.
Poucas pessoas são capazes de compreender um dragão. Eles quase nunca revelam o que sentem. Quem poderia compreender, por exemplo, que logo ao despertar (e isso pode acontecer em qualquer horário, às três ou às onze da noite, mas é mais previsível entre sete e nove da manhã, pois essa é a hora dos dragões) sempre batem a cauda três vezes, como se estivessem furiosos, soltando fogo pelas ventas e carbonizando qualquer coisa próxima num raio de mais de cinco metros? Acho que ele faz isso pra que no fim só restasse eu, ele e as cinzas. Cinzas são como sedas para um dragão, nunca para um humano, porque a nós lembra destruição e morte, não prazer. Eles trafegam impunes, deliciados, no limiar entre essa zona oculta e a mais mundana.
Percebo ás vezes que os dragões não querem ser aceitos. Eles fogem do paraíso, esse paraíso que nós, as pessoas, inventamos. Os dragões não conhecem o paraíso, onde tudo acontece perfeito e nada dói nem cintila ou ofega, numa eterna monotonia de pacífica falsidade. Seu paraíso é o conflito, nunca a harmonia.
Um dragão nunca acha que está errado. Tudo que faz, e que pode parecer perigoso, excêntrico ou no mínimo mal-educado para um humano igual a mim, é apenas parte dessa estranha natureza dos dragões.
Eles são seres invisíveis às vezes, você sabe. Sabe? Eu não sabia. Isso é tão lento, tão delicado de contar - você ainda tem paciência? Quando ele não está presente eu posso senti-lo, mesmo a quilômetros de distância, mesmo sem poder vê-lo. E se você disser que isso é impossível, ele rirá. Você o achará talvez até irônico. Ele olhará pra você e perguntará: “Então você só acredita naquilo que vê?” Se você disser que sim ele falará em unicórnios, salamandras, harpias, hamadríades, sereias e ogros, fadas, átomos, buracos negros, anãs brancas, quasars e protozoários. E dirá, com aquele ar levemente pedante: "Quem só acredita no visível tem um mundo muito pequeno. Os dragões não cabem nesses pequenos mundos de paredes invioláveis para o que não é visível".
Eu aprendi um jeito de perceber quando o dragão está ao meu lado, mesmo em épocas distantes. Os dragões param sempre do lado esquerdo das pessoas, para conversar direto com o coração. O ar ao meu lado fica leve, de uma coloração vagamente negra, sinal que ele esta feliz. Sorríamos suaves, meio tolos, descendo juntos pelo elevador numa tarde de junho - esse é o mês dos dragões - dentro daquele clima de eternidade fluida que apenas os dragões sabem transmitir.
Ele cheira a hortelã e alecrim, cheiro de manha no campo. Quando chega, o apartamento inteiro fica impregnado desse perfume.
Nos dias que antecedem a sua chegada, eu acordo no meio da noite, o coração disparado e sem saber por que, nas manhãs seguintes, compulsivamente eu começo a comprar flores, limpar a casa, ir ao supermercado para encher o apartamento de rosas e chocolates (os dragões adoram comer chocolate, mesmo passando mal depois).  Tudo fica mais feliz, e meu coração dispara quando aquele cheiro de alecrim e hortelã começa a ficar mais forte, escorregando que nem brisa por baixo da porta e se instalando devagarzinho no corredor de entrada, no sofá da sala, no banheiro, na minha cama.
Por situações como essa eu o amo, muito, e sempre me sinto um pouco incompleta quando ele vai embora e é sempre um alivio quando ele retorna pra perto.
Quando ele vai, dormindo ou acordada, eu recebo sua partida como um súbito soco no peito, olho para cima, para os lados, à procura de Deus ou qualquer coisa assim - hamadríades, arcanjos, nuvens radioativas, demônios, nunca os achei nada, nunca vi nada além das paredes de repente tão vazias sem ele.
Só quem já teve um dragão em casa pode saber como essa casa parece deserta depois que ele parte. Dunas, geleiras, estepes, sem mais reflexos negros pelos cantos, nem perfume de ervas pelo ar, a vontade de ser feliz dentro da gente fica apertadinha misturada com sintoma de saudades.
Quando volto a pensar nele, nestas noites em que dei para me debruçar à janela procurando luzes móveis pelo céu, gosto de imaginá-lo voando com suas grandes asas negras, solto no espaço, em direção a todos os lugares que é lugar nenhum.
E então quando a saudade aperta mais saio à procura de ilusões como o cheiro das ervas ou reflexos negros de escamas pelo apartamento e, ao encontrá-los, mesmo apenas na mente, torno-me então outra vez capaz de afirmar, como num vício inofensivo: tenho um dragão que mora comigo.

E hoje, vinte e cinco meses depois que esse dragão apareceu na minha vida, eu ainda sinto a falta dele, ainda sinto a distância que nos separa fisicamente, mas também sinto a sintonia que sempre nos aproxima, meu coração ainda acelera quando o cheiro de alecrim e hortelã se mistura com o meu perfume de jasmim, e eu sinto dentro do meu coração, como é incrível viver com um dragão. Mesmo com todos os problemas que ele causa e seu gênio difícil, ainda é infinito o prazer que sinto ao ser aconchegada dentro dos seus braços.

Feliz 25 meses Bo

Te amo muito muito muito ♥

Serendipity 


* Texto baseado na obra de Caio Fernando de Abreu: Os dragões não conhecem o paraíso.


sábado, 6 de julho de 2013

Carta de Demissão


Venho por meio desta, apresentar meu pedido de demissão da categoria dos adultos. Resolvi que quero voltar a ter as responsabilidades e as ideias de uma criança de sete anos no máximo.
Quero acreditar que o mundo é justo e que todas as pessoas são honestas e boas.
Quero acreditar que tudo é possível.
Quero que as complexidades da vida passem despercebidas por mim e quero ficar encantada com as pequenas maravilhas deste mundo.
Quero de volta uma vida simples e sem complicações.
Cansei dos dias cheios de computadores que falham, montanhas de papeladas, noticias deprimentes, contas a pagar, fofocas, doenças e necessidade de atribuir um valor monetário a tudo que existe. Não quero mais ter que inventar jeito de fazer o dinheiro chegar até o próximo pagamento.
Não quero mais ser obrigada a dizer adeus a pessoas queridas, e com elas uma parte da minha vida.
Quero ter a certeza de que Papai do Céu está realmente no céu, e de que por isso, tudo está direitinho neste mundo.
Quero viajar ao redor do mundo no barquinho de papel que vou navegar numa poça deixada pela chuva.
Quero jogar pedrinhas na água e ter tempo para olhar as ondas que elas formam.
Quero achar que as moedas de chocolate são melhores do que as de verdade, porque podemos comê-las e ficar com a cara toda lambuzada.
Quero ficar feliz quando sair à primeira flor na arvore da minha rua dizendo que chegou a primavera e não precisamos ficar preocupados com os casacos pesados que atrapalham as brincadeiras.
Quero passar as tardes de verão a sombra de uma árvore, construindo castelos no ar e dividindo-os com meus amigos.
Quero voltar a achar que chicletes e picolés são as melhores coisas da vida.
Quero que as maiores competições que eu tenha sejam entrar num jogo de queimada e elefante-colorido.
Quero voltar ao tempo em que tudo que eu sabia era o nome das cores, tabuada, cantigas de roda, a "Batatinha quando nasce..." e a "Oração do Anjinho da Guarda" e que isso não incomodava nadinha, porque eu não tinha a menor ideia de quantas coisas eu ainda não sabia.
Quero voltar ao tempo em que se é feliz, simplesmente porque se vive na bendita ignorância da existência de coisas que podem nos preocupar ou aborrecer.
Quero acreditar no poder dos sorrisos, dos abraços, dos agrados, das palavras gentis, da verdade da justiça, da paz, dos sonhos, da imaginação, dos castelos no ar e na areia e quero estar convencida de que tudo isso vale muito mais do que o dinheiro!
A partir de hoje, eu me demito.



Desconheço a autoria