Pra começar meu
relato devo dizer que alguns não me consideram um ladrão, pois afinal, ladrão é
aquele que rouba um objeto de alguém, pega sem consentimento, então
literalmente eu não sou um ladrão, eu sempre peço antes de pegar, e quando as coisas
estão perdidas eu me aproprio delas, afinal já dizia o ditado achado não é
roubado.
Prefiro justificar
minha profissão como algo que traz alivio as pessoas, seria eu um anjo, um
demônio ou um xamã muito poderoso, ou quem sabe o melhor amigo que um
desesperado pode ter. Mas eles preferem me chamar de ladrão, tudo bem, que
assim seja, não vou me abster em nomenclaturas.
Eu vago pela
noite de bar em bar, visito hospitais, asilos, orfanatos, casebres, mas
engana-se quem pensa que somente nesses lugares existem almas para ser pegas,
eu visito palácios, casas familiares com cachorros, gatos e brinquedos, as
almas desesperadas por vezes estão nos lugares em que menos esperamos. Está no
rosto da menina mais linda, ou da menina mais inteligente, no rosto do garoto
popular ou daquele que sempre está contando uma piada pra alegrar o ambiente. E
com o passar do tempo às almas desesperadas estão aumentando.
É engraçado
isso, achei que com o passar dos séculos as coisas melhorariam, hoje todos têm a
sonhada liberdade de expressão, tecnologias avançadas, curas pras doenças, mas
penso que os seres humanos estão regredindo, eles estão cada vez mais só, cada
vez mais voltados ao próprio umbigo e aos próprios problemas, seres
desesperados que procuram abrigo em redes sociais, festas, bens materiais, mas
não conseguem estar bem consigo mesmo em apenas 10 segundos de solidão.
É aí que eu
entro, cada vez mais jovens em seus 10 segundos de solidão me procuram, gritam
meu nome em alto som implorando pra que eu leve sua alma, sua jovem alma que ainda
não viveu nada, mas que acarreta um peso tão grande em si mesmo que ele prefere
viver sem ela, mesmo que isso traga sérias consequências como não conseguir mais
sentir nada. E eles não querem sentir, eles só querem viver, viver mecanicamente
suas vidas sem um sentimento de alegria, paz, tristeza ou amor. E eu vendo
muitas vezes esses jovens cheios de vida implorando pra que eu leve suas almas
me compadeço de sua tristeza, e digo que o verdadeiro alivio pras seus corações
está dentro de si mesmo, não fora, mas eles não ouvem, e isso é um mal desse
novo século, ninguém mais ouve um conselho, ninguém mais ouve um amigo, ninguém
mais ouve a si mesmo, seus corações não falam mais, todos têm suas próprias crenças
e ilusões do que significa a vida, e não precisam mais ouvir nada. Crianças
tolas, eu penso, suspiro, tiro o baú de dentro do casaco preto e em um minuto a
alma está guardado dentro dele, deixo o jovem dormindo em sua cama e amanha
tudo estará bem, ele pensará que foi um sonho e seu cérebro o guiará para o
melhor caminho, e algum dia quem sabe, quando ele quiser ouvir seu coração
perceberá que é tarde demais, pois um coração não fala sem uma alma.
Minha vida se
resume nisso, eu roubo almas, não roubo, mas as guardo, são meus tesouros,
pessoas colecionam livros, figurinhas, latinhas, brinquedos...eu coleciono
almas. Não sei quando isso começou, talvez quando eu era bem jovem, não me
lembro, só me lembro que desde que minha primeira alma foi conquistada eu não
mais envelheci, nem uma ruga, nem um cabelo branco, acho que elas me
fortalecem, ou quem sabe, exista mesmo alguma força superior que precisa de mim
nesse trabalho, não sei. Nunca tive o
desejo da vida eterna, como eu disse no começo, às vezes me vejo como um anjo
ou um demônio, dando as pessoas exatamente o que elas querem, mas no fundo do
meu coração eu sinto compaixão por elas, sinto por vê-las assim, mas sinto
também que não posso fazer nada, são as escolhas que movem o mundo, elas fizeram
as delas e eu faço as minhas. É assim que deve ser.
Durante a noite
o trabalho é mais pesado, quase não tenho tempo pra descansar, mas quando o dia
nasce poucas almas se desesperam. A maioria volta à rotina de trabalho, estudo,
estudo, trabalho, e eu, bem eu vou ver o nascer do sol. Gosto do nascer e do
por do sol, gosto de vê-lo cada dia de um lugar diferente, um dia prefiro vê-lo
nascendo no mar, outro dia se pondo nas montanhas, um dia gosto de vê-lo
nascendo em meio às areias do deserto e se pondo entre a neve branca. Acho que
isso é um dos maiores prazeres do meu trabalho, posso me locomover com o
pensamento, isso e os livros. Durante séculos aprendi o grande mundo mágico dos
livros, e eles são meus companheiros nos dias de solidão que se seguem sem fim.
Às vezes penso
que vou ficar desesperado com essa vida que levo, aí me pergunto, se eu ficar
desesperado quem virá roubar minha alma, quem virá pra ficar no meu lugar? Mas
me acalmo em seguida, é só fechar os olhos e conversar com meu coração, ele
sempre me dá as respostas que preciso, e sempre me conforta nas horas em que me
sinto alterar.
Algum dia quem
sabe eu consiga me aposentar, acredito que falta pouco pra pílula anti-desespero
ser inventada, ou uma injeção com validade de um ano que inibe seus
sentimentos, ou uma pastilha com o seu gosto favorito que deixa feliz por 24h...quem
sabe!
Bom pra
terminar, eu gostaria de deixar um conselho, quem sabe um conselho escrito
alcance mais pessoas e elas entendam o sentido daquilo que sempre lhes falo:
Escute mais seu
coração, converse mais, viva intensamente cada momento, veja o nascer e o por
do sol, seja amigo e seja verdadeiro, observe o instante mágico dos dias,
observe a vida que segue e que cada dia se extingue um pouco mais, suas vidas
são como ampulhetas, a areia não para de descer e o tempo não para de correr,
não deixe pra perceber o real sentido das coisas quando a areia estiver quase
no fim. Mas se mesmo assim, ainda não conseguir ficar 10 segundos consigo
mesmo, olhando dentro de você e se encarando no espelho, me chame, basta gritar
meu nome em alto som que eu apareço pra levar sua alma, pois na realidade eu
acredito que você não é merecedor dela.
Atenciosamente.
O ladrão de almas desesperadas.