“O que as pessoas mais desejam é alguém que as escute
de maneira calma e tranqüila. Em silêncio. Sem dar conselhos. Sem que digam:
"Se eu fosse você" A gente ama não é a pessoa que fala bonito. É a
pessoa que escuta bonito. A fala só é bonita quando ela nasce de uma longa e
silenciosa escuta. É na escuta que o amor começa. E é na não-escuta que ele
termina.
Não aprendi isso nos livros. Aprendi prestando atenção.
Todos reunidos alegremente no restaurante: pai, mãe, filhos, falatório alegre.
Na cabeceira, a avó, com sua cabeça branca. Silenciosa. Como se não existisse.
Não é por não ter o que dizer que não falava.
Não falava por não ter quem quisesse ouvir. O silêncio dos
velhos. No tempo de Freud as pessoas procuravam os terapeutas para se curarem
da dor das repressões sexuais. Aprendi que hoje as pessoas procuram os terapeutas
por causa da dor de não haver quem as escute. Não pedem para ser curadas de
alguma doença. Pedem para ser escutadas. Querem a cura para a dor da solidão.
Acho bonito o taoísmo, filosofia oriental. Para saber
como ele é basta ler os poemas de Alberto
Caeiro. O taoísmo é um jeito de olhar para o mundo.
São muitos os jeitos de olhar para o mundo. Cada jeito,
cada mundo. O taoísmo diz que o mundo é feito de encaixes. Tudo vem aos pares.
O que não tem par não existe. Tudo é macho e fêmea: yang, yin. Quando as duas
partes do par se encaixam faz "dac" - e a felicidade acontece.
Para haver encaixe é preciso que cada parte seja incompleta.
Se as partes fossem completas os encaixes não seriam possíveis nem necessários.
Como num quebra-cabeça. Cada peça tem de ter um buraco. Esse buraco é para nele
se encaixar um "pleno" da outra peça. Se tal buraco não existir, o
encaixe não pode acontecer. O quebra-cabeça fica frouxo, solto, desmancha. Mas
não acredite nessa palavra "pleno", que usei. Usei por falta de
outra. "Pleno" sugere algo completo, em que nada falta. Mas a verdade
é outra.
Todo "pleno" é um buraco visto pelo avesso.
Quando o buraco e o pleno se juntam acontece o encaixe. (Quem já montou
quebra-cabeça sabe do prazer quase erótico que se sente ao fazer uma peça se encaixar
na outra. Como se fosse uma metáfora sexual. Confirmação do taoísmo.) Viver é montar
um quebra-cabeça. Viver é procurar encaixes.
Acho que os taoístas aprenderam isso observando a boca
de um nenenzinho sugando o seio da mãe. A boca é um vazio. Sem nada saber ela
já sabe sobre os encaixes. Suga o vazio. Seus movimentos rítmicos são a
primeira forma de oração, sem palavras. Oração é o vazio que espera. A boca
vazia ora pelo "pleno" que a satisfará: o seio da mãe. Mas o
"pleno" do seio da mãe é também oração: quer uma boca que o sugue.
Quando boca e seio se encontram o encaixe acontece. É a felicidade. O vazio de
um é o pleno do outro. O vazio de um é a felicidade do outro.
Assim é o amor. A tristeza amorosa é o vazio desejando
o pleno. Sócrates inventou um mito para explicar o amor. Disse que Eros nasceu
do casamento entre a "Pobreza" e a "Plenitude". O amor é um
buraco na alma. Quem ama é pobre. Falta alguma coisa. Peça desencaixada do quebra-cabeça.
O sentimento amoroso é a nostalgia pelo pedaço que me falta, "pedaço arrancado
de mim". Assim são o masculino e o feminino.
O masculino é o pleno que ora pelo vazio que o abraçará.
O feminino é o vazio que ora pelo pleno que nele se
encaixará. Quando os amantes se abraçam e as peças se interpenetram, os corpos
se encaixam, como no quebra-cabeça. Todo ato de amor é uma realização efêmera
de uma unidade original perdida.
Assim são o yang e o yin, o pleno e o vazio, o seio e a
boca, o masculino e o feminino, a fala e a escuta.
A fala é masculina: o pleno, sêmen, semente, penetração
(podere, em latim, quer dizer cavar), ejaculação. Segundo o Aurélio, essa
palavra, ejaculação, que é usada normalmente para designar o jato de esperma,
significa também "proferir, dizer em voz alta". Ejacular esperma e
falar são a mesma coisa.
O ouvir é feminino. O pênis ereto é uma pobreza.
É uma súplica, uma oração por uma vagina que o acolha.
A semente, para germinar, precisa de um buraco na terra que a acolha. A fala é
pobre, falta.
Procura o vazio do ouvido. A ejaculação da fala, masculina,
acontece num momento. Mas a germinação da escuta, feminina, demanda tempo e
silêncio.
Para ouvir não basta ter ouvidos. É preciso parar de
ter boca. Sábia, a expressão: "Sou todo ouvidos". Todo ouvidos;
deixei de ter boca. Minha função falante, masculina, foi desligada. Não digo
nada. Nem para mim mesmo. Se eu dissesse algo para mim mesmo enquanto você fala
seria como se eu começasse a assobiar no meio de um concerto. Faço, para ouvir você,
o mesmo silêncio que faço para ouvir música.
Vou agora lhe revelar o segredo da escuta.
Quando era iniciante na arte da psicanálise tratava de prestar
a maior atenção naquilo que o cliente me estava dizendo. Levou tempo para que
eu percebesse que quem presta muita atenção no que é dito não consegue escutar
o essencial. O essencial se encontra fora das palavras. Fernando Pessoa, essa
distração dos deuses, sabia disso e escreveu. Está num poema que ele dirigiu a
um poeta.
O poeta é um falador. Constrói objetos com palavras. A
esse poeta, cujo negócio é falar, ele diz:
Cessa o teu canto.
Cessa, porque enquanto o ouço, ouve a uma outra voz
como que vindo nos interstícios do brando encanto
com que o teu canto
vinha até nós.
Ouvi-te e ouvi-a
No mesmo tempo
E diferentes
Juntas a cantar.
E a melodia
Que não havia
Se agora a lembro, Faz-me chorar.
Preste atenção no que está escrito. Fernando Pessoa diz
que a fala tem duas partes. A primeira são as palavras que são ditas: a letra.
A segunda é uma melodia que se faz ouvir nos interstícios da fala: a música. A
letra é coisa do consciente, cerebral. A música é coisa do corpo, inconsciente.
Aquilo a que a psicanálise dá o nome de inconsciente é a música do corpo. Quem
diz a letra não percebe que está cantando.
Tem havido tentativas de produzir uma fala que seja só
letra, sem a música. A ciência e a filosofia têm se esforçado por esse ideal-
uma fala da qual o corpo do que fala esteja ausente. Fala sem alma, só informação.
A voz metálica, monótona, indiferente, de robô, dos serviços de alto-falantes
dos aeroportos é uma expressão sensível desse ideal desumano. Você poderia
imaginar um diálogo de amor com essa fala?
Não existe voz humana que não tenha música.
Aí Fernando Pessoa diz que a letra não tem importância.
Não é nela que se encontra aquilo que importa escutar. Pede até ao poeta que
pare de falar porque a fala dele atrapalha ouvir a melodia... Esse é o absurdo
segredo da escuta: é preciso não escutar o que se diz para se poder ouvir o que
ficou não-dito, a música. É na música que mora a verdade daquele que fala.
Assim, se você quiser ouvir bem, não preste muita atenção
na letra. Esqueça as lições da hermenêutica, a ciência da interpretação dos
sentidos. Aprenda a sentir a música. Todos os tipos de música, do tam-tam dos tambores
a Boulez. Porque o que os compositores fizeram foi só fazer tocar em
instrumentos aquilo que era tocado pelo corpo. Parafraseando Uexküll:
"Todo corpo é uma melodia que se toca." Seria bom se, nos cursos de
psicologia, se lesse menos livros e se ouvisse mais música.”
Rubem Alves